Um novo historiador – Entrevista com Paulo Cunha

Especialista em cinema português, Cunha esclarece suas motivações para propôr uma nova escrita da história da linguagem no país.

Por Eduarda Kuhnert

 

A historiografia do cinema produzido, visto, compartilhado e experimentado em Portugal é a principal preocupação de Paulo Cunha, professor da Universidade da Beira Interior e pesquisador associado ao Proprietas. Autor do livro “”Uma nova história do novo cinema português””, fruto de sua pesquisa de doutorado, Cunha consolida um profícuo debate acerca da metodologia utilizada para a escrita dessa história, acrescentando objetos e problemáticas antes não elaborados pelos que se aventuraram a discutir o setor cinematográfico no país. Além de escritor e professor, Paulo Cunha é um entusiasta do movimento cineclubista em Portugal, tendo pesquisado a respeito da produção dessa rica forma de encontro e exibição de filmes. Tivemos a oportunidade de conversar com o historiador e o resultado encontra-se a seguir.

EDUARDA: Em 2018 você lançou o livro “”Uma nova história do novo cinema português””, no qual “procura desenvolver um novo olhar sobre a história do cinema em Portugal”, como esclarece na introdução. Poderia nos explicar o que consiste esse “novo” da sua investigação historiográfica?

PAULO CUNHA: Em primeiro lugar, pelo sentido etimológico, porque é um texto recente, que resulta de uma revisão significativa de uma parte da minha tese de doutoramento que foi defendida em 2015. Por outro lado, porque é um “trocadilho” com a designação do meu objeto de estudo, o “novo” cinema português. Finalmente, e essa é a razão mais importante, porque este livro propõe uma série de revisões metodológicas para o estudo do cinema em Portugal que sugere novas leituras e interpretações para vários “mitos” instituídos pela história do cinema português entretanto canonizada.

E: Ainda sobre o termo “novo”: existe uma disputa entre a utilização das expressões “cinema novo português” e “novo cinema português”. Quais foram as suas motivações para escolher a segunda opção?

PC: A proposta de releitura que faço para a história do cinema em Portugal entre 1950 e 1980 começa precisamente por uma pesquisa arqueológica pelos termos que foram sendo utilizados para tentar caracterizar um momento de renovação estética no cinema português desse período. Nas últimas décadas, a designação que acabou por se popularizar pelos meios de comunicação e pela opinião publicada para falar desse cinema foi a expressão “cinema novo”, consolidada após a primeira grande retrospectiva organizada pela Cinemateca Portuguesa em 1985. O que a minha pesquisa revelou foi que, na época, das várias expressões utilizadas (“jovem cinema”; “nova vaga”, “cinema moderno”), a mais frequente, abrangente e inclusiva foi “novo cinema”, referindo-se a um esforço de renovação vindo das décadas de 1940 e 1950, que envolvia a crítica de cinema, o movimento cineclubista, o movimento neorrealista, entre outros. Por seu lado, a expressão “cinema novo” resumia essa renovação a um número reduzido de filmes e realizadores, tentando afastá-los de dinâmicas e fenômenos que seriam determinantes. Por isso, a minha proposta de regresso à expressão “novo cinema” propõe uma leitura mais ampla, além da recepção dos filmes e do estudo autoral dos seus realizadores, incluindo, sobretudo, as políticas públicas e os modos de produção.

E: Portugal viveu sob um regime autoritário entre 1926 e 1974, período que se inclui o Estado Novo (1933–1974). Curiosamente, coincide com uma época em que a linguagem cinematográfica estava se desenvolvendo intensamente. Quais forças repressivas dos governos salazarista e marcelista fizeram parte da construção do cinema português? Além disso, como se desenvolveu a utilização dessa linguagem pelo próprio Estado Novo?

PC: Como outros regimes autoritários e totalitários europeus, o Estado Novo também fez um uso propagandístico do cinema, aproveitando as suas características para promover sua mensagem ideológica. Tanto no cinema ficcional, de entretenimento, mas sobretudo no cinema dito “documental”, como os cinejornais ou os filmes culturais, o cinema foi instrumentalizado através da censura e do controle sobre os meios de produção. Durante o período inicial do Estado Novo, que correspondeu ao período em que António Ferro foi o responsável pela propaganda do regime (1933–1949), a produção cinematográfica encontrava-se concentrada em poucas produtoras, sendo muito visível uma clara interferência estatal. Após esse período, ainda que a censura fosse atuante, os modos de produção se tornaram mais acessíveis e isso permitiu a produção de vários filmes que, de certa forma, rompiam com as diretrizes da política cultural da ditadura. Os filmes neorrealistas de Manuel Guimarães, nos anos 1950, ou os filmes modernos mais radicais de João César Monteiro, nos anos 1960, são exemplos de filmes que foram produzidos fora de um controle estatal, que acabariam por ter dificuldades de circulação, ou que foram mesmo integralmente censurados. Por outro lado, a polícia política (PIDE) também foi muito vigilante e atuante, tendo perseguido cineastas (Fonseca e Costa e o próprio Manuel de Oliveira foram detidos, por exemplo) e vários dirigentes cineclubistas, levando inclusivamente à extinção de diversos cineclubes em várias regiões do país.

E: Um de seus focos de interesse está na retomada da história do movimento cineclubista em Portugal, que você afirma o seu “importante papel de resistência cultural e mesmo de oposição política à ditadura vigente”. Poderia nos esclarecer qual foi a importância dessa atividade nas formas de produção, distribuição e exibição dos filmes portugueses?

PC: Os cineclubes são ainda hoje associações culturais sem fins lucrativos que, através de um sistema de quotização, ofereciam uma programação própria aos seus associados. Ou seja, em determinadas cidades e vilas portuguesas, um grupo de cinéfilos, que poderia variar entre as dezenas ou os milhares, se organizava para romper com os mecanismos comerciais que condicionavam a exibição de cinema em Portugal. Como podem imaginar, para qualquer ditadura, esses grupos autônomos eram vistos com muita desconfiança. Na prática, os cineclubes promoviam sessões de cinema acompanhadas de debate e contextualizadas por leituras, muitas vezes traduzidas de publicações estrangeiras, sem qualquer visto da censura porque não se tratavam de publicações de circulação pública, mas boletins que circulavam de mão em mão apenas pelos associados. Naturalmente, muitos cineclubes surgiram com propósitos oposicionistas, promovidos por cinéfilos antipatizantes do regime, nomeadamente ao Partido Comunista Português (então na clandestinidade) ou a outros movimentos de resistência política (MUD — Movimento de Unidade Democrática ou MDP/CDE — Movimento Democrático Português/Comissão Democrática Eleitoral). Em relação à exibição, os cineclubes estavam particularmente atentos a um tipo de cinema de aspecto mais social e humano, como os filmes neorrealistas italianos, mas também sempre promoveram o tal cinema português feito fora da influência do regime, a que me referi anteriormente. Por outro lado, é hoje sabido que os cineclubes também organizavam sessões clandestinas com filmes censurados, como aconteceu com o “Encouraçado Potemkin” (filme soviético de 1925 que ficou censurado em Portugal até 1974), que era exibido numa cópia em baixa qualidade, em 8mm. Para além da produção de cinema amador e experimental, os cineclubes estiveram ligados à produção dos “filmes neorrealistas do Manuel Guimarães e também “Dom Roberto” (1962, do Ernesto de Sousa), um dos filmes mais importantes do novo cinema português.

E: Esse movimento de resgate do passado português, por meio da produção de uma história das histórias do cinema português que encontramos nos seus textos, está presente também no cinema contemporâneo feito em Portugal?

PC: Durante décadas, a história do cinema em Portugal não foi feita por historiadores ou por cientistas humanos e sociais. Ela foi sendo feita por curiosos, jornalistas, cinéfilos que recolhiam alguns dados considerados relevantes e construíam narrativas muito assentadas na memória individual e colectiva. Na entrada do século XXI, o cinema português começou a ser estudado na academia, através de projetos individuais de mestrado ou doutorado, ou através de projetos de investigação coletivos. Começam a surgir trabalhos em diversas áreas disciplinares, da História à Antropologia, da Sociologia à Arquitetura, etc. Em muitos casos, esses primeiros trabalhos não questionaram as narrativas herdadas, não fizeram um trabalho de verificação das fontes ou do simples contraditório. Na última década, sobretudo, há vários autores que tem promovido essa revisão historiográfica, redefinindo o objeto e propondo novos elementos que desafiam a prática proto-historiográfica que se estabeleceu na segunda metade do século XX. Eu participo desse exercício de estudar as narrativas históricas sobre o cinema em Portugal, de propor novas metodologias e de resgatar fontes que não foram valorizadas ou que simplesmente foram ignoradas. Acho muito importante também observar se, e de que forma, essas narrativas históricas iniciais serviam interesses políticos, corporativos, econômicos ou outros.

E: No tocante às discussões sobre propriedade e bem comum, temas de interesse do Proprietas, quais são os pontos de encontro com a sua pesquisa?

PC: Como um dos meus interesses de pesquisa são os modos de produção, me interessam particularmente as condições políticas, econômicas e sociais que influenciam a produção de cinema e a sua circulação e recepção. Entre outras pesquisas que desenvolvo atualmente, destacaria um estudo que desenvolvo neste momento no âmbito do Proprietas que propõe um mapeamento das empresas de cinema que funcionaram em Portugal desde 1950 até 1980, procurando compreender as complexas dinâmicas que marcaram a economia do cinema e as políticas públicas para o cinema durante esse período.

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